terça-feira, 30 de março de 2010

Não faças da tua vida um rascunho, pois pode não haver tempo de passar a limpo

glittersNão faças da tua vida um rascunho, pois pode não haver tempo de passar a limpo. - (carlos gomes)
"Quando soube que tinha de escrever a minha autobiografia, achei que seria fácil.Começaria pelo meu nascimento até aos dias de hoje.Ao sentar-me diante do computador para iniciar a minha história de vida, então dei conta que não seria assim tão fácil. É preciso ter muita disponibilidade psicológica para colocar no papel uma vivência de 42 anos.Sinto que ao escrever a minha autobiografia será como um escritor ao escrever o seu próprio livro.
Eu sei a minha história e tenho de a ir organizando. O que escrevo tem de fazer sentido e muitas vezes sinto que me falta a inspiração, as frases não saem, sinto a cabeça vazia.Ao contar a minha história recordo bons e momentos menos bons do meu percurso de vida. Sinto que tem sido gratificante colocar para o papel a minha história de vida. Tem-me feito reflectir sobre o que tem sido a minha vida, se tenho seguido o caminho correcto, se as minhas opções foram as mais correctas e chego à conclusão que apesar de alguns acidentes de percurso, a minha viagem tem sido feita em segurança, com responsabilidade e alguma sabedoria.Espero fazer um óptimo trabalho!
Poemas
Correnteza
Na correnteza
da memória
as vozes ocultas,
as lágrimas
sem luz,
a escuridão
das estações,
os silentes
apelos dos mortos,
a lua por
cima dos mitos,
o menino parado
nas planuras,
as palavras que
não regressam( e
no entanto, prosseguem).
Na correnteza
da memória
a ossatura dos
dias,
o sonho assustado
dos galos,
a mansidão
profética dos
bois.
E por cima do
tempo, as
aves, as flores
e os homens
decifrando
o enigma.
Poema
O poema não se constrói do nada.
O poema não se faz do sonho.
É do absurdo que o poema
nasce,
da dor,
das coisas insólitas,
dos vôos fracassados,
das aves de ferro
que não cruzam os céus,
do sol ausente,
dos efêmeros encantos
que nos atormentam,
dos portos que apenas
vemos mas aos quais
nunca chegamos.
O poema se constrói
dos dias idos,
das vagas réstias
que assombram nossas
noites,
das águas paradas dos
pântanos,
da magia das horas
que não se cumprem.
E deste fogo
e desta mágoa
muito além da vida.
Noite
A noite é
uma vaca
de ubres imensos
e boca de pejo.
A noite é uma
loba amamentando
os filhos.
A noite é
uma ave agoureira
clamando no deserto.
A noite é um profeta
sem multidão.
A noite é um
pégaso enlouquecido.
A noite é um
grito de surdos.
A noite é um
monstro bifronte.
A noite é um brado
apunhalando a noite.
Trânsito
No ventre da tarde
as tribos desfilam.
Seus tropéis têm
sons de arcanjos
apunhalando a rua.
Acorrentadas as
tribos se matam
em busca de pão.
Para onde caminham?
Que prêmios disputam?
De que matéria é feita sua solidão?
No ventre da tarde
as tribos desfilam.
E colhem do asfalto
o sangue sazonado
os mortos.
As meninas da 25 de Dezembro
A maresia corroeu a inocênciadas meninas da Rua 25 de Dezembro.Penetrou por suas saias curtas e pobres,fez remoinho em seus sexos,subiu até a altura dos seios pequenosonde a alma e a delicadeza tentaramesboçar uma reação. Em vão.As meninas da Rua 25 de Dezembro,expostas ao odor e à fúria da maresia,expõem seus corpos em plantão permanente.Não querem piedade. Querem foda.Querem vinte, trinta dinheiros,em troca do corpo infantil que a maresiaestá corroendo até a morte prematura.
Um amor em Natal
Um amor que me lesse poemasquando meus olhos glaucomatososexigissem minutos de silêncio.Um amor que me levasse às falésias de sole lá de cima, tonto de anticrespúsculo,me pedisse carícias duras.Um amor que me escrevessetrinta e uma vezes e mais trintatoda vez que eu fugisse dos seus braçospara cumprir a penitência dos malditos.Um amor que acompanhasse revoadas de santossobre a fortaleza, sobre o Potengi,sobre o meu peito, a partir do santuário do seu sexo.
O Potengi
Esse rio é uma loucura,esse rio é um assombro,já fiz amor no seu leito,com água pelos meus ombros,tendo ao lado doze botosme fazendo companhia,rindo seus risos de botosob o sol do meio-dia.Esse rio não existe,é ilusão, pura magia.Um dia levei num barcoa paixão de Margarida,o Potengi ficou doido,lambeu a mulher queridae quase que ele me afogaem treze redemoinhos,cuspiu lodo nos meus olhos,fez ondas, fez burburinho.Esse rio é tão bonitoque perdôo sua loucura.Afoga meu pôr-do-sole corre à minha procura.
Elegia para o poeta Luís Carlos Guimarães
Todas as elegias são inúteiscomo uma lareira sob o vendaval,como um pacto de amor no sonho que se esvai,como uma dor que não eleva, apenas dói.Uma elegia, amigo, não devolveo essencial do teu olhar sobre as coisas líricas,o gesto que enlaçava a poesia como um abraço,o calor humano que emanava de tie queimava qualquer possibilidadede desencontro, de desencanto, de desamor.A elegia que teima em surgircomo uma convidada vestida em roupas soturnasnão recompõe teus passos numa tarde de Natal,numa segunda-feira de bares fechadose amigos abertos ao teu lirismo congênito.Não, a elegia não traz de volta a tua voz saudando poetas e vinhos,elegendo poemas, tocando na última esquinaos peitos dormidos de uma casada infiel.A elegia traz lembranças e as lembrançassão belas mas doem como um soco, um espasmoque conduz ao infarto do miocárdio.As lembranças me conduzem, prisioneiro de mãos atadas,aos primeiros poemas, aos porres inaugurais,ao vinho bebido, quase pela última vez,numa calçada do Porto, junto à beleza melancólicados poetas portugueses.A elegia não refaz a amizade, não responderásemanalmente as minhas cartas. Não atende telefone.Uma elegia, meu amigo Luís Carlos Guimarães,é uma forma de dor que não quero mais para mim.Melhor é me ferir no gume delicado dos teus versos.
Encontro com Lorca no Granada
Era um pedaço da Espanhana Avenida Rio Branco.Don Morquecho comandavaa noite e seus saltimbancos.Dois conhaques apagavama luz do comedimentodo adolescente pobreque sonhava com poesia.Uma noite, quando a luanuma procissão de nardostrouxe Lorca até o bar,o adolescente gritou:- Estive contigo, Lorca,no fogo-fátuo da América.Tu procuravas garotos,eu sonhava com as lésbicas.Eu vinha da Professor Zuzae tu vinhas de GranadaAh, tu sorrias por tudo,e me abraçavas por nada.Ai, Lorca nos meus sentidos,ai, gitano enlouquecido.
Um amor na zona da Ribeira
Um amor de prostitutanos quatro cantos do quarto,é uma tragédia gregaem decadente teatro.Segunda-feira, ela banhao sol e a lua com mel,na terça, oferece a bunda,trancelim, relógio, anel.Na quarta, sente ciúmes,maldiz a vida e a sorte.Na quinta, volta o ciúmeagora muito mais forte.Na sexta, toma um pilequerasga a roupa, desgrenhada.No sábado, você foge,e não quer vê-la por nada.
No domingo, ela se rasga
com gilete enferrujada.
Quatro poemas de José Nêumanne Pinto.A SEARA DE SARAMAGO
Esta língua é minha semente,machado de mulato do morro,pátria de poeta lisboeta.Esta língua é minha visão,o sol do soldado caolho,a mão do soldado maneta.Esta língua é minha música,na palavra do padre pregador,no pássaro do padre voador.Esta língua é minha mulhertem cuidados de mãeno leito da amante.Esta língua é minha rosa,tem perfume dos sertões gerais,tem sabor de vinhos do Porto.Esta língua é meu cavalopara subir cidades e serras,que a brisa do Brasil beija e balança.Esta língua é fel com mel,cantigas a palo secode ninar o futuro.Esta língua é meu coração,na tortura, na paixãoe no sal amargo da purificação.Esta língua é jóia africana,ela caça a onça caetana,ela cruza a légua tirana.Esta língua é fruto de meu ventre,mata sede de amizade,me arma nos bons combates.Esta língua não é de viver,língua de navegar e de lambere de dançar o tango argentino.Esta língua é meu berço,esta língua me conhece, esta língua é meu caixão.NA CASA AVOENGA
A nuca cansada apoiadana palma aberta da mão,os olhos míopesdo velho Chico Ferreiraescutavam o choro do sertãono céu sem estrelasda mais escura vastidão.um sapoum griloum rêsuma rãAssim era o serãona Fazenda Rio do Peixe,de onde fui vindo.Todo som que me vierdo bojo da rabeca de Bié,como chuva na telhae sabor de leite coalhadocom rapadura rapada– eta emoção!GARATUJAS DE BAR
A verdade verdadeira,a verdade profunda,aquela que espreitana falha de San Andrese vive na Gruta do Maquiné;a verdade dos peixesque nadam no atol de Mururoa,não se encontra em antologias,nos romances de amor,nos tratados de filosofia,nos livros de poemasnem nos jornais,nas revistasou nos noticiáriosdo rádio e da TV.A verdade nua- o romantismo tardiodo “Adagetto” de Mahler -;a verdade fria do icebergque afundou o Titanic;a verdade crua da pedra umeque afiava o cinzel do Aleijadinho,esculpindo profetas;a verdade úmida e róseada mucosa que se perdiaentre os pelos e as pernas de Salomée da língua entre os dentes alvosde Salomé;a verdade crueldo bigodinho de Hitlere a verdade alegredo bigodinho de Chaplin;esta verdade adolescente,sadia e doente,esta verdade febril,ela não está nas cançõesde Rodgers e Hartnem nos cocos de Dona Selmaou nos sambas de Cartola.Ela não sente dor de cotovelonem veste cuecas samba-cançãoou calcinhas de renda do Ceará.Esta verdade só se achana poesiados guardanapos de papelde algum boteco da Lapa,manchada de sangue e sêmen,suor e cerveja.STABAT MATERStat mater dolorosa, dum pendet filius (João, 19;25)Stabat mater dolorosa juxta crucem lacrimosa dum pendebat filius(texto atribuído a frei Jacopone Benedetti da Todi)Quando eu nascer,mamãe vai sorriraquele sorriso beatoque só as mães sabem dar:um pouco por se ver,um pouco por ternura;um tanto por me tere outro por tontura.Quando eu me criar(bezerro desmamado),vou beber e tragarseu leite morno- um pouco de proteína,um pouco de gordura;um tanto de escasseze outro de fartura.Quando eu crescer,seu coração vai pulsarao ritmo de baterde versos ditos de cor,um brilho de somna noite escura:palavras de candurarompendo a pausada infância vaga.Enquanto eu viver(ser despido de lembranças),ela vai gargalharde cada travessurae vai me punirpor cada travessura.Terei sua bênção,sendo sua graçaou sua tortura.Se terei!Quando eu morrer,esteja ela onde estiver,aqui no planetacomo no jardim do céu,minha mãe vai padecere vai gemer,minha mãe vai verterseu pranto adocicadoe o leite derramadodo peito esfomeado,sobre o leito esparramado.E, aí, minha mãe vai renascernos filhos que eu tiver,e vai crescer de novonos netos que eu lhe der,e vai viver pra semprenos versos que eu fizer:cantigas de amorna terra bruta,na grama dura,o infinito grão."

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